Zacarias, o mudo que fala de Deus!


"Entretanto, chegou o dia em que Isabel devia dar à luz e teve um filho. 58 Os seus vizinhos e parentes, sabendo que o Senhor manifestara nela a sua misericórdia, rejubilaram com ela. 59 Ao oitavo dia, foram circuncidar o menino e queriam dar-lhe o nome do pai, Zacarias. 60 Mas, tomando a palavra, a mãe disse: “Não; há-de chamar-se João.” 61 Disseram-lhe: “Não há ninguém na tua família que tenha esse nome.” 62 Então, por sinais, perguntaram ao pai como queria que ele se chamasse. Pedindo uma placa, o pai escreveu: “O seu nome é João.” (Lc 1,57-63)

O versículo 62 deste texto bem conhecido apresenta, aparentemente, uma dificuldade de interpretação. Em Lc 1,20 lemos: Vais ficar mudo, sem poder falar, até ao dia em que tudo isto acontecer, por não teres acreditado nas minhas palavras, que se cumprirão na altura própria. A tradução deste versículo pode começar de outro modo: Vais ficar em silêncio e sem capacidade (força) para falar. Não é absolutamente linear que o verbo siwpáw signifique apenas ficar mudo. A tradução mais exacta é a de ficar em silêncio… e tanto está em ou no silêncio, quem não fala, como quem não ouve. Seja como for, a partir deste versículo temos contextualizada a situação de Zacarias, ou seja, o “castigo” pela sua falta de fé, por não acreditar no anúncio do Anjo – ao considerar impossível que Deus lhe desse um filho na velhice.

Mudo, ou em silêncio?

A acusação do Anjo – o motivo do “castigo” – é por não teres acreditado (Pisteúw, em grego) e, pior ainda, por não teres acreditado que havia de cumprir-se (Plêrwthêsontai) tudo o que devia acontecer no tempo oportuno.
É uma acusação gravíssima. O verbo plêrów (cumprir-se), é usado no Novo Testamento com o significado concreto do cumprimento das profecias, do tempo, da intervenção de Deus na História. O Anjo acusa Zacarias da pior forma de sedição contra Deus, ao pôr em causa a sua Palavra; pior ainda, ao “desconfiar” d´Ele, ao não ser capaz de acreditar, de conhecer, de chegar ao da’at.
Por isso, o castigo é o do silêncio, quer seja o silêncio do som, quer seja o da palavra. Porque duvida, Zacarias fica condenado a não poder comunicar. O verbo usado no v. 62 é siwpáw, ficar em silêncio, tanto no sentido de não poder falar, como no de não poder ouvir. Acima de tudo, no sentido de não poder entender…
Curiosamente, a discussão do mundo greco-romano e do mundo rabínico da Mishnah e do Talmud, que afloramos mais adiante, vai centrar a sua atenção na capacidade ou incapacidade de o mudo, ou o surdo ou o surdo-mudo, entender, perceber, acreditar, ter ou não ter capacidade de chegar ao “conhecimento”, da’at.
A partir do que se afirma em Lc 1,62 ficamos sem saber exactamente se Zacarias ficara só mudo, ou surdo-mudo tal como o v. 62 dá a entender ao afirmar que, ao atribuírem o nome a João, os circunstantes comunicaram com ele por sinais (enéneuon)… Ora se ele tivesse ficado só mudo, a linguagem gestual, porventura utilizada, era absolutamente desnecessária.
Então, em que ficamos? Era mudo, surdo-mudo, ou apenas com “mau feitio”, ao ponto de rejeitar a possibilidade de o filho poder usar o mesmo nome que ele?
Como o leitor já deve imaginar, no texto há muito mais “miga” para além das palavras. Vamos por partes, sem entrar demasiado em detalhes tecnicistas que façam perder o fio à meada ou, pior ainda, voltar a página…

A influência greco-romana
Uma das frases nunca demasiadamente recordadas, é que “a Bíblia nasceu da vida”. Aqui, mais uma vez, este aforismo torna-se verdade.
A cultura hebraica moveu-se no ambiente greco-romano. Este, embora sem conseguir abafá-la, influenciou-a com alguns elementos que deixaram nela a sua marca. E, para entender a comunicação com Zacarias por sinais, temos de alargar o horizonte de referência até esse ambiente greco-romano da época.
Aquele mundo civilizacional não tinha lugar para o “diferente” (o nosso também não, mas disfarça muito melhor…). Platão (427-347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.), só para citar dois pensadores gigantes da cultura grega, defendiam o infanticídio para “limpeza étnica”, como uma forma de piedade para com o deficiente, a sua família e a sociedade, que se “livravam” assim de um “peso”.
Fechando mais o nosso campo de atenção, chegamos à deficiência da comunicação no caso dos surdos, dos mudos e dos surdos-mudos, cuja diferenciação não era muito clara em termos de tipologia. O entendimento de base era, contudo, bastante simples.
Numa sociedade que privilegiava, quase até ao endeusamento, a capacidade de argumentação oral como forma suprema de cultura, arte e filosofia, quem possuísse uma deficiência era remetido à cidadania de segunda classe. Daí os surdos-mudos, os doentes mentais, os imbecis e os menores serem colocados nas mesmas circunstâncias quanto ao respeito social.
A Tábua número IV das famosas Doze Tábuas (450-449 a.C.) do corpus legislativo romano, que está na base do Direito, dava ao chefe de família (pater famílias), direito absoluto de vida ou de morte: «Mata rapidamente qualquer criança que nasça deformada.»
Este direito vai desaparecer a partir do séc. II a.C., e logo no séc. III d.C. abandonar uma criança já era considerado crime. Mas ainda hoje, nalguns países de cultura muçulmana e em certas regiões da Índia, muitas crianças do sexo feminino são mortas à nascença por motivos económicos: porque o dote avultado, que é preciso dar à filha para ela conseguir marido, é um encargo insuportável.

No mundo hebraico
No mundo hebraico, ainda que não imune a este tipo de considerações do ambiente social greco-romano reinante, o “diferente” e os “deficientes” em geral, pelo menos ao nível da “classe pensante”, tinham um tratamento completamente diverso.
Ao nível da “consciência popular”, tanto a doença, como sobretudo a deficiência física e/ou mental, eram consideradas castigo de Deus (ver os discursos dos amigos de Job); ou, mais benevolamente, o resultado de uma possessão demoníaca.
Mas a Mishnah está repleta de referências que vão numa linha diferente. O infanticídio, por exemplo, está completamente fora de questão. «Quem destruir uma simples alma…, diz a Escritura, é como se destruísse o mundo inteiro; quem salvar nem que seja uma só alma…, salva o mundo inteiro…Diante do diferente, ou do deficiente, proclama a grandeza do Santíssimo…porque um homem pode cunhar muitas moedas a partir da mesma forma e elas são todas iguais, mas o Rei dos Reis, o Santíssimo… marcou cada ser humano com o selo de Adão, e nenhum deles é igual ao outro…» (Mishnah Sinédrio).
Este é o ambiente que enforma o pensamento oficial do judaísmo rabínico acerca da relação com a deficiência em geral, para chegar à Mishnah Gittin, cap. 5, secção 7 e percebermos que é nela que Lucas bebe a sua inspiração do ambiente cultural reinante. Mas a concepção da doença, e sobretudo da deficiência como “castigo pelos pecados”, fica a dever-se às elucubrações do judaísmo mais tardio.
O Talmud de Jerusalém, por exemplo, vai na linha de uma aceitação não muito imediata, sobretudo das deficiências adquiridas depois do nascimento, como simples resultado da «variedade do Criador»…

Surdo, mudo e surdo-mudo
O mundo hebraico, como o greco-romano, não faz uma separação muito clara entre o surdo, o mudo e/ou o surdo-mudo. Para o mundo greco-romano, quem padecesse de uma limitação destas era como se padecesse das duas.
Numa civilização em que a capacidade da oratória estava sobrevalorizada, ser incapaz de ouvir, ou de falar, ou de ambas as coisas, significava ser incapaz de entender, perceber, ter inteligência, poder tomar parte na vida da polis – significava ser proscrito! Segundo Aristóteles, quem fosse incapaz de ouvir, nunca seria capaz de desenvolver a sua inteligência; logo, era um proscrito.
Por influência greco-romana, a língua hebraica refere, em associação, três categorias de pessoas: cheresh, shoteh e ka-an; ou seja, o surdo-mudo, o doente mental e o menor. Embora com algumas oscilações, o pensamento judaico dominante é de que o cheresh tem capacidade de da’at; ou seja, que ser surdo-mudo não é sinónimo de ser incapaz de pensar e de querer.
A Mishnah Gittin 5,7 afirma: «Um surdo-mudo (cheresh) pode fazer negócios por sinais e comunicar por sinais. Ben Bathyra diz que pode fazer negócios e comunicar pelo movimento dos lábios e por gestos, em assuntos que têm que ver com os seus bens móveis.» M. Yevamot (14,1) diz: «Tal como o surdo-mudo se casa por gestos e se pode divorciar por gestos, e uma vez que todas estas actividades requerem a inteligência e o uso da razão, os surdos-mudos têm acesso ao conhecimento (da’at).»

Porquê João, e não Zacarias?
Como vimos, a diferença entre o surdo, o mudo e o surdo-mudo, para efeitos práticos não existia; pelo que a comunicação por sinais e por escrito, ainda que o “doente” fosse capaz de falar, era normal e admissível. Logo, Lucas não “erra” ao afirmar que as pessoas comunicaram com Zacarias por gestos e sinais; nem há contradição no facto de Zacarias, podendo eventualmente falar, ter escrito o nome de João numa placa.
Por outro lado, se Zacarias “não deixa” que o seu filho se chame também Zacarias, não é por “mau feitio”. Na mentalidade semita, todos os nomes encerram uma missão; e este menino não era “um Zacarias” qualquer. Zacarias significa «Deus recordou-se», lembrou-se. Este menino é muito mais do que isso: é João, é misericórdia de Deus, é graciosidade de Deus, é resposta de Deus! Não é só “memória”; é uma esperança de presente que aponta a certeza do futuro e sobretudo da continuidade da misericórdia (hesed) de Deus na História; que aponta o Emanuel, o Deus Connosco!

Frei Fernando Ventura (www.capuchinhos.org)

Comentários

  1. Olá Frei, gostei demais do seu "ensaio" teológico sobre Zacarias. Muito atual, aprofundado e educativo. Parabéns e que Deus te abençoe!
    Márcia, Brasil

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