Na tua luz...



No centro deste IV Domingo da Quaresma está o tema da Luz, da passagem das trevas à luz expresso no evangelho com o episódio da cura do cego de nascença que tem implícita uma pedagogia de fé Cristológica. Na segunda leitura o tema tem uma valência baptismal e comporta implicações éticas: a luz baptismal induz a uma vida de conversão. (“É que outrora éreis trevas, mas agora sois Luz no Senhor. Procedei como filhos da luz..." Ef 5,8). Em paralelo com este anúncio a primeira leitura apresenta a unção real de David por parte de Samuel: o gesto e as palavras do profeta que consagram o Messias remetem para as palavras e para os gestos de Jesús "luz do mundo" (Jo 9,5), que dá a luz a quem está nas trevas, com gestos e palavras que invocam a dinâmica sacramental.
As três leituras levantam o problema do discernimento. Primeiro, o difícil discernimento de Samuel para escolher aquele que Deus elegeu entre os filhos de Jesse. Para discernir é preciso ver como Deus vê, consciente que "...o homem vê as aparências, mas o Senhor olha o coração." (1Sam 16,7), ou, como diz a antiga versão siríaca: “o homem vê com os olhos, o Senhor vê com o coração”. Na segunda leitura é pedido ao baptizado que sendo "luz no Senhor" seja capaz de discernir o que agrada a Deus (cf. Ef 5,10-11). O texto evangélico abre-se com o olhar de Jesús e dos discípulos sobre um cego e prossegue com o percurso que leva o cego curado a discernir a verdadeira qualidade de Jesús e a confessar a sua fé n'Ele, enquanto outros se fecham a tal discernimento e permanecem na cegueira espiritual (cf. Jo 9,39-41).
No evangelho Jesús e os discípulos encontram um homem cego, mas olham-no diversamente. Cegos por um axioma teológico que liga de forma automática a doença ao pecado, os discípulos vêm nele um pecador enquanto Jesús vê na doença daquele homem ocasião para se menifestar a acção de Deus. A mesma pessoa e um olhar diametralmente oposto. Quem vemos quando nos deparamos com um doente? O que vemos no sofrimento do outro? O olhar culpabilizante dos discípulos opõe-se ao olhar solidário de Jesús. O texto apresenta-se como uma iniciação em que o homem que era cego recupera a vista e alcança a identidade de Jesús - um reconhecimento que é também um co-nascimento, um renascimento, o nascimento de uma vida completamente renovada pelo encontro com Jesús e expresssa de forma lapidária na confissão "Eu creio Senhor" (Jo 9,38).
O gesto terapêutico de Jesús sobre o cego, quando "...fez lama com a saliva..." (cf. Jo 9,7), recorda o gesto com que Deus criou Adão (cf. Gen 2,7). A re-criação não tem nada de mágico ou espiritualístico, mas tem uma valência humana e conduz aquele que era apenas objecto de palavras e de juízos dos outros a ser sujeito, a assumir a vida, a tomar a palavra e a reivindicar uma identidade: "Sou eu" (Jo 9,9). aquele "Sou eu" é essencial para poder dizer e proclamar com liberdade e convicção "Eu creio!". Tornar-se crente não exime de tornar-se homem. Antes, exige-o.
Diante do cego curado a primeira reacção é a dos conhecidos que fazem perguntas, interrogam mas não se interrogam, não se pôem a si próprios em questão e assim permanecem à superfície (vv. 8-12). O comportamento dos pais que, por medo, não vão além de uma banal constatação do facto (vv. 18-23). O saber teológico dos fariseus, um saber autosuficiente e impermeável, obtuso, que os leva a acusar Jesús (vv. 13-17) e o cego de serem pecadores (vv. 24-34) não se deixando interpelar pelo extraordinário evento. Quem é o cego e quem vê? Esta é a pergunta que o texto suscita. E esta a resposta: vê quem sabe ver a cegueira e abrir-se a acção de cura e de luz que Cristo oferece. “se fôsseis cegos, não estaríeis em pecado; mas, como dizeis que vedes, o vosso pecado permanece." (v. 41).

(texto de LUCIANO MANICARDI, Comunidade de Bose: www.monasterodibose.it)

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Zacarias, o mudo que fala de Deus!

O carinho do Papa Francisco que irrita muitos padres

FRUTOS DA TERRA E DO TRABALHO DO HOMEM