Morrer servindo...


Quando ainda vivia em Itália, à tarde, nós os freis, reuníamos no coro (espaço de oração dos freis) atrás do altar principal da igreja, onde a fraternidade reza, para celebrar as vésperas (oração da tarde). Procurávamos cantar o hino e algum outro salmo e no fim o Magnificat… depois é o momento das invocações e preces e no fim destas breves orações líamos o “necrológio”: são os nomes dos freis mortos naquele determinado dia. Freis que viveram antes de nós ao longo dos séculos da nossa história de Irmãos Menores Capuchinhos. Gostava muito daquele momento: tinha em si uma certa humilde solenidade. Começava-se dizendo a data do dia corrente. Por exemplo: “no dia 15 de Outubro morreram…” Depois diz-se o ano da morte e o lugar onde o frei faleceu, logo depois se dizia a zona de origem do dito frei e no fim fazia-se menção a algumas notas da sua vida, das suas actividades, da sua doença e a causa da sua morte. Em relação aos freis do século XVII não era raro ler: “morto na assistência dos apestados” e quem conhece a história europeia desse século sabe como era espaventosa esta pandemia que arrasava famílias inteiras. Comovia-me sempre aquela frase. Levava-me a perguntar se a minha fraternidade de hoje, se eu seria capaz de tal gesto. Francisco de Assis vive, no encontro e no serviço aos leprosos, um dos momentos fundamentais da sua conversão, tanto que não só determinará uma reviravolta na sua vida mas será este, para os primeiros dez, doze anos da vida da fraternidade, um serviço contínuo. Não só. Antes do nascimento do noviciado (1220) os candidatos à esta forma de vida eram selecionados em base a apenas dois critérios: se se libertavam facilmente dos seus bens dando-os aos pobres e se aceitavam de serenamente servir os doentes da lepra. Aquele que rejeitava ou punha resistência não era considerado apto à vida fraterna. E compreende-se o porquê. São evidentes sinais de doação gratuita: manifestam uma disponibilidade não indiferente, um desejo de colocar-se em jogo seriamente, inclusive (no caso do segundo critério) no concreto do físico ferido de um homem, que como recompensa pelo mau cheiro da carne podre, oferece apenas um obrigado e às vezes nem mesmo isso. Então porque fazer isto? Uma jornalista que tinha visto Madre Teresa de Calcutá, a lavar e mudar um velho coberto de moscas e de chagas diz á religiosa: 
“Eu, madre, aquele moribundo não o tocaria nem mesmo por milhões de dólares…”. E a pequena irmã respondeu: “nem eu...”. Pois… porque o fazes? Questão de heroicidade? Por força de um super herói? Ou existe um sentido mais ordinário em tudo isto? É inútil dizer que pôr-se à disposição de quem pode comunicar-te a sua própria doença, muitas vezes mortífera, exige uma dose de coragem.
Mas o contrário de coragem não é o medo mas é a covardia. De facto, pode conviver com o medo. O covarde foge, o corajoso fica, mesmo que tenha medo da doença, do contágio, da morte. O prefácio dos mártires (a oração que o padre celebra durante a missa antes do canto do santo) reza assim: “Fazeis da nossa fragilidade o testemunho da vossa grandeza”. Está tudo dito. Francisco não era um herói e não eram os freis mortos servindo os apestados. Não, nenhum herói. Eram homens frágeis, com os próprios defeitos e virtudes como todos os mortais, com grande generosidade e medo. Gente normal. Viveram a sua vida com amor e empenho, mas também com contradições e inconsistências. Enfim… seres humanos. Mas encontraram o Senhor Jesus: tiveram a coragem de não ter medo de si mesmos e o seguiram aprendendo dele a pensar, a decidir, a agir como ele. A Pedro que disse a Jesus: “afasta-te de mim que sou um pecador” Jesus responde: “não tenhas medo: farei de ti pescador de homens”. E graças àquele sequela, próprio seguindo a palavra e as acções do Mestre, próprio contemplando de longe o seu morrer na cruz e de perto o seu ressuscitar, compreenderam que a vida está no amor como dom de si partindo das pequenas coisas, até ao serviço cheio de compaixão e misericórdia para com quem é frágil, pobre, necessitado. Mesmo a custo de sacrifícios. Se se deve, até a preço da própria vida. Como o grão de trigo, que - somente morrendo - crescerá.) Não ter medo de cair, mas ser consciente que levantando-se seremos mais fortes e seguramente em condições de decidir melhor da próxima vez. A coragem de ser sempre nós mesmos e coerentes seja em relação à própria pessoa, seja em relação á escolha feita. Nas perguntas importantes, nas perguntas que nos levam a reflectir e também naquelas que nos levam a mudar de direcção as únicas respostas válidas e que satisfazem são “sim” e “não”, tudo o resto é secundário. 

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