sexta-feira, 29 de abril de 2011

Crer para ver!



O Evangelho deste segundo Domingo da Páscoa fala-nos do encontro de Jesus ressuscitado com o apostolo Tomé que queria ver para crer. Por isso muitos chamam Tomé de incrédulo. Na verdade a mensagem deste passo evangélico é uma outra bem diferente. É uma mensagem muito profunda e actual.
Tomé, um dos doze, não era presente quando Jesus apareceu aos seus discípulos uma semana antes e não quis acreditar no testemunho dos outros que lhe diziam. “Vimos o Senhor”. Tomé põe uma condição sine qua non: “se não vir nas suas mãos o sinal dos cravos, se não meter os dedos no lugar dos cravos e a mão no seu lado não acreditarei”
Tomé é exigente. Para crer quer ver! Não deseja um milagre para poder crer. Não! Quer ver os sinais nas mãos, nos pés e no lado! Não acredita num Jesus glorioso separado do Jesus humano que sofreu na cruz. Quando João escreve, no final do primeiro século, existiam pessoas que não aceitavam a vinda do Filho de Deus na carne humana. Eram os agnósticos que desprezavam a matéria e o corpo. João apresenta esta preocupação de Tomé para criticar os agnósticos: “ver para crer”. A dúvida de Tomé faz também aparecer a dificuldade em crer na ressurreição.
O texto diz “seis dias depois”. Isto significa que Tomé foi capaz de sustentar a sua opinião durante uma semana inteira contra o testemunho dos outros apóstolos. Cabeça dura! Ainda bem! Assim, seis dias depois, no meio de uma reunião da comunidade, viveram de novo a experiência profunda da presença do Ressuscitado no meio deles. As portas fechadas não puderam impedir a presença de Jesus no meio daqueles que crêem nele. Ainda hoje é assim. Quando nos reunimos, mesmo com as portas fechadas, Jesus está no meio de nós. Também hoje a sua primeira palavra é e será sempre: “a paz esteja convosco”. Aquilo que impressiona é a bondade de Jesus que não critica nem julga sumariamente Tomé e a sua incredulidade, mas aceita o seu desafio e diz: “Tomé, põe o dedo nas minhas mãos!”. Jesus confirma a convicção de Tomé e da comunidade dos discípulos, isto é, O ressuscitado glorioso é o crucificado humilhado e torturado. O Jesus que está na comunidade não é o Jesus glorioso que nada tem a ver com a nossa história mas é o mesmo Jesus que viveu sobre esta terra e no seu corpo traz os sinais da sua paixão. Tomé crê neste Jesus, e nós também!

domingo, 24 de abril de 2011

A verdade do Evangelho!

Neste primeiro dia da semana que segue à grande festa (festa tão grande que se prolonga por oito dias. Mais, por cinquenta dias. Festa que se repete cada Domingo, Páscoa semanal. Festa que se repete a cada Eucaristia), é a vida quotidiana da fé que (re)começa. Uma fé que não se fossiliza. Porque, se aquilo que cantámos e dissemos na Noite da grande Vigília é verdade, o é somente quando o Cristo ressuscitado garante aos seus que estará com eles e para eles até ao último dia. Dia em que todos os homens descobrirão o significado autêntico da VIDA.
Os factos da Páscoa que os Evangelistas, de maneira diferente, viveram e resumiram nos seus respectivos livros são um testemunho. Testemunho contestado na época deles como na nossa.
São Mateus fala de Maria de Mágdala e da outra Maria, que encontram um anjo perto do sepulcro ao romper da aurora. Quando obedecem e deixam a sepultura vazia, Jesus ressuscitado as encontra enquanto corriam pela estrada com temor e alegria. É o próprio Jesus, o vivente, que confirma a missão das “Marias”: “ide anunciar aos meus irmãos que partam para Galileia. Lá me verão.” De facto a fé e a obediência são os dois traços que caracterizam toda a vida histórica de Jesus que veio não para fazer a sua vontade mas a do seu Pai. Fé e obediência são também os traços que devem fundar a vida e a missão do discípulo do Ressuscitado.
Mas é também diante do sepulcro vazio que se desenvolve uma nova oposição que contesta a ressurreição e rejeita acreditar. Enquanto as duas mulheres correm para anunciar a boa notícia, os guardas também correm para levarem aos sumos sacerdotes uma notícia triste e inquietante. Como estes não aceitam a verdade da Páscoa, “fabricam” para o mundo uma “explicação”. Inventam uma mentira. Uma mentira de deste então nunca mais parou a sua corrida pelas estradas do mundo e parece que tal mentira tenha mais pressa e seja mais eloquente que as palavras do Evangelho. Desde então até hoje esta mentira não conhece descanso e basta que se apresente um punho de dinheiro para que, com novas habilidades, esta se renove com novos “best sellers”. Mas esta vantagem sobre o Evangelho é apenas aparente. É aquilo que nos faz crer os grandes mass media. O Evangelho é mais eloquente e mais autêntico de toda mentira. O Evangelho corre mais veloz; o faz porém, privilegiando espaços discretos. Os grandes mass media, onde os interesses vão muito além de “um punho de dinheiro”, parecem incapazes de distinguir o som das palavras apenas sussurradas com as quais o Evangelho é anunciado e atravessa os séculos.
Nos dê o Senhor o dom do seu Espírito, que nos faça capazes de entender as palavras novas do Evangelho, nos faça ler de maneira nova, á luz do seu Evangelho, as palavras antigas de toda a Escritura. Que o seu Espírito nos ensine a viver a corrida da nossa vida sob o signo da esperança levando a alegria de o ter encontrado e na certeza que ele nos precede. Assim seremos portadores da sua verdade e não da mentira do poder instalado!!

Este é o DIA!



Aquele Sábado que precedeu o Domingo de Páscoa foi um Sábado diferente de todos os outros Sábados. As mulheres da Galileia preparavam em segredo aromas, mas era escuro no coração delas. Também a Mãe de Jesus esperava em silêncio. É o Sábado do silêncio de Deus.
É também assim para mim, sentado diante do sepulcro.
Mas chegou o terceiro dia, e uma manhã, ou uma tarde, ou melhor ainda uma noite, numa esquina (Mt 28,9), ou num jardim (Jo 20), ou no silêncio do meu quarto, o encontro acontecerá, será como e quando ele quiser. A mim basta desejar e fazer memória e esperar. E o reconhecerei, como as mulheres, graças a dois sinais que não enganam: um sacro temor, uma trepidação da cruz de quem ama mas se espaventa, e uma alegria que aumenta dentro de mim, humilde e forte. Então correrei como Maria de Magdála, como as outras mulheres, para anunciá-lo, “com temor e grande alegria”. Para dizer com a vida: Cristo é vivo!
A mim não basta saber que Cristo é morto, uma cruz a mais entre os tantos patíbulos da terra, eu devo saber se Cristo resuscitou. “Aquilo que faz crer é a cruz, mas aquilo na qual cremos é a vitória sobre a cruz” (Pascal). Esta é a aposta da minha fé: Jesus é vivo, hoje. Enquanto quem não acredita me dirá: não, Jesus é morto. A diferença está aqui sintetizada. Eu creio que o futuro não pertence à violência. Este é o sentido da Páscoa para a nossa história, onde a ressurreição de Cristo não está nunca separada da nosso própria ressurreição.
A Páscoa é o mais árduo e o mais lindo tema de toda a Bíblia. Árduo porque é contrário a todas as evidências e lógicas, lindo (se creio)porque é a vida que se reacende de VIDA. Páscoa não é somente a “salvação”, que é libertar-nos da perdição e das águas impetuosas que nos ameaçam, mas Páscoa é também “redenção”, que é muito mais, que é transformar a fraqueza em força, a maldição em benção, a cruz em glória, a traição de Pedro em acto de fé, o meu defeito em energia nova, fuga numa corrida veloz de regresso.
A manhã de Páscoa é caracterizada por uma corrida frenética e continua. Maria corre ara anunciar a Simão e ao outro discípulo que Jesus amava que o sepulcro era vazio, Pedro e João correm em direcção ao sepulcro… Porque todos correm? Que necessidade há de correr? Tudo aquilo que toca Jesus não suporta mediocridade mas merece a pressa do amor: o amor tem sempre pressa, quem ama está sempre atrasado na fome dos abraços. Correm impelidos por um coração em tumulto, porque eram cheios de ânsia pela luz. Pensemos em João. Ele viveu por inteiro o drama da paixão, estando muito próximo ao seu mestre. Correu mais do que Pedro e antes de todos os outros viu e acreditou. Quem ama ou é amado compreende mais e melhor. O primeiro sinal da Páscoa é o túmulo vazio, o corpo ausente. Na história humana falta um corpo para fechar a conta dos injustiçados e mortos inocentemente. Falta um corpo á contabilidade da violência e da morte. A Páscoa levanta a nossa terra, esta planeta de sepulcros, para um mundo novo, onde o mal não vence, onde o carnífice não terá razão sobre o inocente. Pasqua: “o bom perfume de Cristo é odor de vida que conduz à vida” (2Cor 2,16)

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Missa que celebra Missa

Na linguagem litúrgica corrente, inclusive nos livros litúrgicos se intende como Tríduo Pascal o ciclo de três dias que vai de Quinta feira até Sábado Santo. Mas na origem da expressão litúriga estão os três dias dos quais se diz  no Credo: Ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras. Neste sentido, os três dias são aqueles que vão do momento da Cruz, portanto da Sexta Feira Santa, até ao Domingo da Ressurreição. Naqueles três dias (Sexta, Sábado e Domingo) a celebração eucarística é única, é tipicamente aquela da Vigília pascal. A grande Vigília que põe fim ao silêncio da Palavra feita carne e desceu na víscera  da terra.
Na Quinta Feira Santa celebra-se uma Missa chamada Ceia do Senhor. Esta recorda exactamente o gesto que Jesus fez na última Ceia. Na verdade, toda a celebração eucarística é feita em memória Dele, para pregar a sua morte, anunciar a sua ressurreição, na esperança da sua vinda gloriosa. Portanto, toda a celebração eucarística celebra sempre a Páscoa do Senhor.  A celebração da Quinta Feira Santa a duplica, por assim dizer. Fixa a nossa atenção e a nossa meditação sobre o gesto mediante o qual a memória da Páscoa é celebrada. Para usar uma formula paradoxal, podemos dizer que aquela de Quinta Feira Santa é uma Missa que celebra a própria Missa. 
Por esta sua natureza sui generis  a Missa da Quinta Feira Santa convida a retomar a reflexão sobre um tema empenhativo, e de particular urgência neste nosso tempo, muitas vezes qualificado como secular. Uma das maiores expressões da secularidade  é exactamente a dificuldade em compreender o sentido do momento ritual da religião, e sobretudo particá-lo na verdade. Sabemos todos muito bem como em especial a prática eucarística não é considerada por muitos cristãos seculares como momento alto da sua fé. Porém, o próprio Jesus deu esta ordem: “Fazei isto em memória de mim”. Mas porque Jesus quis confiar a um gesto ritual a memória da sua paixão?
Jesus durante a Última Ceia com os seus, constatando a impossibilidade de colocar na mente no coração dos discípulos a verdade sobre a sua paixão eminente, colocou tal verdade na boca deles. O seu gesto naquela noite pareceu, segundo toda a evidência, bastante obscuro aos discípulos. Todavia o Pão que eles comeram e o vinho que beberam, juntamente com as palavras de Jesus que acompanharam o gesto, permaneceu profundamente impresso na memória deles, incancelável  e ao mesmo tempo incompreensível.  Permaneceu impresso como uma pergunta à espera da resposta. 
Então aquele gesto pareceu obscuro como obscuras pareceram todas as palavras de Jesus pronunciadas naquela noite. Obscura, e até escandalosa, parece também e sobretudo a sua paixão e morte. 
Numa famosa página de Lucas se diz que dois discípulos encontraram Jesus depois da sua morte longo a estrada de Emaús. Imediatamente não o reconheceram, mas a conversa com aquele estrangeiro acendeu neles um desejo. Desejo do quê? Não saberiam responder com precisão mas em todo o caso sentiam o desejo de prolongar a sua presença. O reconheceram depois à volta de uma mesa no momento em que ele repartiu o pão. A narração  põe eficazmente em relevo como a memória do gesto da Ultima Ceia, que parecia um gesto materialmente incompreendido, se transforma o meio decisivo para realizar a intuição arcana e reconhecer a presença do Senhor ressuscitado. O rito é necessário exactamente por este motivo: os pensamentos da mente estão sempre atrasados em relação aos presságios segredos do coração. De facto, os dois discípulos, reconhecem como o encontro com o personagem desconhecido da estrada de Emaús estava atravessado por um presságio: “Não nos ardia o coração, quando Ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?” (Lc 24,32). O rito portanto fixa a memória daquilo que não se compreende mas que todavia não se pode esquecer. Mantém viva a esperança que se manifeste a verdade que até ao presente nos escapa.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Serei eu?


Antes de entrar no Santo Tríduo Pascal, as Escrituras nos imerge na consciência com que Jesus decide viver a sua Paixão, para revelar-nos o rosto do Deus bendito, o amor infinito do Pai. Lá onde imaginamos que a capacidade de ir ao encontro de um trágico destino derive de uma força divina presente na pessoa de Jesus, a Palavra profética revela que somente a partir de um profundo contacto com a fraqueza pode nascer a possibilidade de não voltar a trás na hora de dar o testemunho. Esta fraqueza é o comportamento de Jesus, o Mestre que fez da escuta dos outros o respiro da sua inteira existência. O Senhor chega a consumar a sua Páscoa por nós porque se fez ouvinte e discípulo da nossa humanidade perdidade: “O Senhor Deus abriu-me os ouvidos, e eu não resisti nem recusei” (Is 50,5). “cada manhã”, cada hora, cada dia da sua existência terrena, Jesus fez “atento” os seus ouvidos a nós, até acolher, sem condições e sem limites, tudo aquilo que em nós há o perfume de vida ou cheira a morte, “”sabendo que não ficaria envergonhado”.
A sua é uma escolha livre e ponderada, que não hesita em declarar com lucidez aos seus discípulos, como fosse uma revelação e não um anúncio de um falhanço eminente: “Em verdade vos digo, um de vós me trairá” (Mt 26,21). Jesus compreendeu que a tropa dos discípulos é desencorajada e cheia de medo e sabe perfeitamente que é “próximo” o tempo da traiçãoe aquele que o levará a cumprimento: “aquele que mete comigo a mão no prato, esse me entregará” (Mt 26, 23). Mas, exactamente por isso não volta atrás e transforma a hora da derrota numa solene liturgia de volontário, livre amor.
O coração do Senhor escutou atentamente o vazio presente no nosso coração ao ponto de escolher assumir sobre si o suplício da cruz para nos libertat do poder do inimigo. Jesus compreende que é verdadeiramente na lama o homem que não sabe escolher a vida como dom de amor. “Seria melhor para esse homem não ter nascido” (Mt 26,24). Assim escolhe morrer para arrebatar este trágico destino do nosso futuro e viver-lo no seu presente, determinando um intervalo entre passado e futuro que ainda hoje chamamos de tempo de salvação.
Na vigília do Tríduo a liturgia procura oferecer-nos uma ultima, dramática oportunidade de envolvimento no mistério pascal, pondo sobre os nossos lábios as palavras da não indiferença: “porventura serei eu?”.

terça-feira, 19 de abril de 2011

Não ainda!


Depois de ter-nos exortado de todas as maneiras a seguir mais seriamente e mais amorosamente o Senhor Jesus no seu caminho, a Quaresma agora parece quase querer impedir-nos de dar qualquer passo em frente, como acontecera já com os primeiros discípulos. Na fraqueza de Judas que trai e na cobardice de Pedro de renega, contemplamos hoje a parte da nossa humanidade que não pode entrar em aliança com Deus antes de alcançada e salvada pelo seu amor.
O Mestre não é um ingénuo, conhece bem aqueles que escolheu, as suas fragilidade e os seus corações endurecidos. E, talvez, depois de três anos de vida em comum, no seu animo cresce o desconforto de quem não vê ainda os frutos de tanta generosa sementeira: “em vão me cansei , em vento e em nada gastei as minhas forças” (Is 49,4). Mas mais forte é seguramente o testemunho interior do amor fiel do Pai, que o Senho Jesus reconhece dentro de si como uma palavra segura e digna de fé: “Tu és o meu servo, em ti serei glorificado” (Is 39,3). O mestre compreende que chegou a hora muito especial, na qual a nada valeria escapar ou renunciar. Chegou a hora em que o perfume do amor de Deus precisa tornar-se como uma luz que se irradia até alcançar os extremos confins da vida e da morte.
Diante desta expansão luminosa encontrámos porém duas pessoas que não conseguem acolher a gratuidade do dom. Diante do perfume do homem autêntico, permanece o cheiro ultrapassado dos homens, desgostosa fragrância dos discípulos ainda inconscientes do dom de Deus e inconscientes da sua pobreza. Judas decidiu já de trair o Mestre porque não partilha o modo com que “Deus revelará a glória do Filho do Homem, e há-de revelá-la muito em breve” (Jo 13,32).
Jesus denuncia o tropeçamento presente no coração de Judas com um gesto elegantíssimo, com o qual transforma a traição em voluntária oferta: molhando um pedaço de pão lho deu (cf. Jo 13,26). Mas tem ainda Pedro, que ficou vencido pela sua vontade de poder: “daria a vida por ti” (Jo 13,37). Responde-lhe Jesus: “darias a vida por mim? Em verdade, em verdade te digo: não cantará o galo, antes de me teres negado três vezes!” (Jo 13,38) O problema de Pedro é ainda mais grave que o de Judas porque é velado, se esconde debaixo de um manto de heróico zelo. Pedro não compreendeu ainda que ser discípulo não significa dar a vida por Deus, mas acolher a sua vida que nos é oferecida e sucessivamente restituir-la aos irmãos por amor.
Se em Judas vemos o mal do qual somos salvados, em Pedro podemos reconhecer o bem do qual o Senhor deve também salvar-nos. O primeiro e o último dos discípulos representam a nossa humanidade que tropeça diante do gratuito e da caridade de Deus, um dom que não podemos nem negar (Judas) nem conquistar (Pedro), mas que devemos aprender a receber gratuitamente. É isto mesmo que o Senhor Jesus procura dizer com a sua consentimento que se faz comando: “o que tens a fazer fá-lo depressa” (Jo 13,27) e predição: “não cantará o galo, antes de me teres negado três vezes” (Jo 13,38).
O Mestre diz-nos em antecipação o nosso pecado, para que possamos compreender que ele (o pecado) não é capaz de parar o seu amor por nós. O perfume de Cristo precisa difundir-se próprio sobre este cheiro de falso zelo (Pedro) e de virilidade ferida (Judas), docemente, sem medo, para que se cumpra em nós e para nós toda a profecia de salvação.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Na ponta dos pés!


Escutando o Evangelho desta Segunda Feira Santa, 19 de Abril, somos todos inundados pela fragrância daquele “perfume” que um dia encheu “toda a casa” dos amigos de Jesus (Jo 12,3). Lázaro tinha saído vivo do sepulcro, a alegria tinha-se transformada numa fraterna ceia. “Marta andava a servir
e Lázaro era um dos que estavam à mesa com Jesus” (12,2). Maria, no entanto, literalmente fora de si, transforma a sua alegria numa gratidão sem confins: “tomou uma libra de perfume de nardo puro, de alto preço, ungiu os pés de Jesus e enxugou-Lhos com os cabelos” (12,3).
O caminho em direcção ao Tríduo Pascal inicia assim, com uma excessiva onda de perfume na qual se prefigura e se intui todo o significado da paixão do Senhor Jesus. A linguagem da Páscoa se exprime e se compreende no campo do amor, onde o raciocínio, o cálculo prudente, a conveniência devem ceder o passo à lúcida loucura do dom gratuito.
Maria compreendeu a segreda beleza do Cristo. No estranho modo com que Jesus esperou e depois libertou Lázaro do mau cheiro da morte, Maria intuiu que o “servo” de Deus veio ao mundo para dar alegria e salvação. O fará porém humildemente, com extrema delicadeza: “Não gritará, não levantará a voz, não aclamará nas ruas. Não quebrará a cana rachada, não apagará a mecha que ainda fumega. Anunciará com toda a fidelidade a verdadeira justiça” (Is 42,2-3). Como um perfume, realidade impalpável que chega a todos os lugares, mudando tudo sem alterar nada. A salvação cristã não é a abolição dos limites do nosso ser criaturas ou os gerados pelo mau uso da nossa liberdade, mas é amor que enche de esperança todo o medo de viver e de morrer. É perfume que restitui dignidade a todas as coisas. Até ao pecado e à morte.
Não é imediato compreender e apreciar esta paradoxal modalidade de salvação. Existe em nós uma parte tão habituada a crer que viver consiste no possuir e dominar que muitas vezes não sabemos fazer outra coisa senão “fincar os pés” diante da lógica das bem-aventuranças: “porque é que não se vendeu este perfume por trezentos denários, para dar aos pobres?” (Jo 12,5) Em Judas vemos representada toda a humanidade desfalecida pela sua fraqueza mortal, que tem dificuldades em crer no doce poder do amor. Mas o Senhor comanda ao seu revoltado discípulo: “Deixa”. Somente obedecendo a este imperativo se entra na festa da Páscoa: abandonando as armas, renunciando os juízos, desobedecendo aos mesquinhos lamentos do coração. Na ponta dos pés!

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Domingo de Ramos!



A entrada de Jesús em Jerusalém é posta, em Mateus, sob o signo do cumprimento da Palavra profética (cf. Mt 21,4-5). A citação de Zc 9,9 põe Jesús na esteira do Rei "justo, salvado e humilde" (segundo o texto hebraico) de que fala o texto profético. Mas é significativo que o incipit do trecho de Zacarias, que convidava Jerusalém à alegria (“Exulta de alegria, filha de Sião! Solta gritos de júbilo, flha de Jerusalém!"), seja substiuído em Mateus com uma citação de Is. 62,11: “Dizei à filha de Sião: aí vem o teu Rei, ao teu encontro, manso e montado num jumentinho;” (Mt 21,5). Desta forma a entrada de Jesús na cidade santa tranforma-se uma palavra para Sião, um anúncio que a interpela mas a que a cidade não responde com alegria mas sim com perturbação e desconfiança: "...,toda a cidade ficou em alvoroço. "Quem é este?" - perguntavam." (Mt 21,10). Os eventos da vida e da história, lidos à luz das Escrituras, tornam-se Palavra que pede dicernimento ao crente.
Mateus cita o oráculo de Zacarias mantendo apenas o atributo de mansidão do Rei que entra na cidade santa. A mansidão do "Messias" Jesús (cf. Mt 11,29) consiste na renúncia às prerrogativas reais, ao uso da força e do poder quase ilimitado, para escolher conscientemente a via da humildade, da não-violência, do respeito, do agir pacificamente. Se este Rei é "fraco", é-o graças a uma grande força que presidiu à sua escolha: a escolha de renunciar à força e ao poder.
A direcção precisa que Jesús mantém, com resolução, na sua existência e na sua vocação, é expressa no texto evangélico através do absoluto controle dos eventos, enviando os discípulos dois-a-dois, dando-lhes indicações claras e prevendo o que aconteceria (cf. Mt 21,1-3). Mas Jesús prevê eventos banais, que não parecem ter valor histórico ou espiritual. Parece que Jesús quer que as coisas aconteçam assim, que ele monte um burro manso, que depois restituirá ao dono, para narrar e marcar com o ritmo do mular, o caminho de Deus ao encontro do Homem. A reacção dedesconhecimento e incompreensão da cidade nos confrontos com este Rei que, só pelo seu agir, rebate as características de um rei da época, é significativa de uma possibilidade permanente para o cristão e para a Igreja: senti-Lo como estranho a si próprio, o Cristo revelado pelos Evangelhos, o Cristo pobre, o Cristo manso, o Cristo que não se impõe. Enfim, o Cristo que escolhe como transporte nã um cavalo, mas um burro. Aquele "Quem é este?" da cidade incrédula, deve impor ao cristão e à Igreja uma outra pergunta: "Quem sou eu?"; "Que imagem do Senhor guia a minha prática cristã?". É à luz da mansidão daquele "Messias", da pobreza daquele Rei, da exclusão daquele que veio, que os cristãos e as Igrejas são chamadas a verificar as suas práticas. O paradoxo tem a função de revelação, mas pode tornar-se obstáculo.
Mateus sublinha, mais do que os outros evangelistas, a presença de uma multidão numerosa à entrada de Jesús em Jerusalém: “Uma grande multidão...” (v. 8); “E todos...” (vv. 9.11). Grande quantidade de gente que precede e segue Jesús, participação popular, confissão de fé, invocações litúrgicas, gestos de tributo para com Aquele que entra em Jerusalém. Parecem cenas de um evento coroado de sucesso. Mas no meio de todo este alvoroço a presença silenciosa de Jesús. Impõe-se uma questão: a multidão compreende o que está a acontecer? comprende aquilo que é verdadeiramente importante compreender? compreende Jesús e o seu agir paradoxal? A cena posterior da mesma multidão que pede a Pilatos que solte Barrabás, condenando Jesús (cf. Mt 27,20-24), sugere uma resposta negativa à questão. Desde sempre a fé cristã exigiu qualidade (isto é profundidade, interioridade, seriedade, liberdade, coragem , coerência,...), não quantidade. O problema é o terreno bom, não todo o terreno ou cada terreno, porque "onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, Eu estarei no meio deles." (cf. Mt 18,20) e porque "nem todos têm fé." (2Ts 3,2).
Texto: http://www.monasterodibose.it/

sábado, 9 de abril de 2011

Ressurreição e vida!



Jesus vai à Betânia impelido pela amizade. Nós não sabemos nada acerca de Lazaro, a não ser que era amigo de Jesus. Esta é a sua identidade: “aquele que Jesus amava”. De Lazaro conhecemos também todas as lágrimas choradas por ele: coram Marta e Maria, choram os judeus, chora até mesmo Jesus. As lágrimas são o anúncio de que o amor é sempre ameaçado, que a felicidade é frágil, porque muitas coisas fogem ao meu controlo: o meu corpo, o meu coração e o coração dos outros, os acontecimentos da história e a natureza à minha volta.
Eu invejo Lázaro não pela vida que Deus lhe deu de novo, mas pelo facto de ser circundado de amigos, sinal de uma vida conseguida, realizada. A sua santidade é a amizade, sacramento que conforta a vida. No entanto, a mim o que importa Lázaro? A que serve a sua ressurreição? Lázaro não é meu amigo, não é nem meu Pai nem minha mãe. Lázaro não é nenhum dos meus mortos. A mim importa não importa Lázaro. Importa sim, Jesus e o seu amor pelo amigo. Amor até as lágrimas. É isto a salvação: o choro de Deus. Eu não morrerei para sempre graças ao seu amor que não aceita terminar.
“Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido.” Estas palavras as faço minhas: se tu Senhor estás comigo não morrerei. Se estás comigo a noite não virá. Nos dias das lágrimas Deus parece longe. O seu atraso pesa muito. Para Marta e Maria o peso durou quatro dias. No entanto Deus é sempre presente porque nós somos o seu céu. Ele é presente não como isenção da morte, mas como ressurreição e vida. Eu creio com a fé do anónimo que morrendo escreveu: Creio no Sol, mesmo que ele não brilhe. Creio no amor, mesmo que não o sinta. Creio em Deus, mesmo quando ele se cala !

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Deus é amor!

Apresentamos a segunda pregação de Quaresma à Cúria Romana, realizada nesta sexta-feira, na presença do Papa, pelo padre Raniero Cantalamessa, Franciscano Capuchinho. (tradução de www.zenit.org)

DEUS É AMOR
O primeiro e fundamental anúncio que a Igreja tem a missão de levar ao mundo, e que o mundo espera da Igreja, é o amor de Deus. Mas, para terem como transmitir esta certeza, é preciso que os próprios evangelizadores sejam intimamente permeados por esse amor, que tem que ser a luz da sua vida. É para esta meta que, pelo menos em mínima parte, a presente meditação pretende se dirigir.
A expressão “amor de Deus” tem duas acepções bem diferentes: uma em que Deus é objeto e a outra em que Deus é sujeito: uma que indica o nosso amor por Deus e a outra que indica o amor de Deus por nós. O homem, mais propenso por natureza a ser ativo que passivo, mais a ser credor que devedor, sempre deu precedência ao primeiro significado, àquilo que nós fazemos para Deus. A pregação cristã também seguiu esse caminho, falando, em certas épocas, quase só do “dever” de amar a Deus (“De diligendo Deo”).
Mas a revelação bíblica dá a prevalência ao segundo significado: ao amor “de” Deus, não ao amor “por” Deus. Aristóteles dizia que Deus move o mundo “porque é amado”, ou seja, é objeto de amor e causa final de toda criatura [1]. Mas a bíblia diz exatamente o contrário: Deus cria e move o mundo porque ama o mundo. O mais importante do amor de Deus não é que o homem ama a Deus, mas que Deus ama o homem e o ama “primeiro”: “Nisso está o amor: não fomos nós que amamos a Deus, mas Ele quem nos amou” (1 Jo 4,10). Disso depende todo o resto, incluída a nossa própria possibilidade de amar a Deus: “Nós amamos porque Ele nos amou primeiro” (1 Jo 4,19).
1. O amor de Deus na eternidade
João é o homem dos grandes saltos. Ao reconstruir a história terrena de Cristo, os outros tinham se atido ao seu nascimento de Maria; ele viaja para muito antes, do tempo para a eternidade. “No princípio era o Verbo”. E faz o mesmo a respeito do amor. Todos os outros, Paulo inclusive, falaram do amor de Deus manifestado na história e culminado na morte de Cristo; João vai além da história. Não nos apresenta só um Deus que ama, mas um Deus que éamor. “No princípio era o amor, o amor estava junto de Deus e o amor era Deus”: assim podemos destrinchar a sua afirmação “Deus é amor” (1 Jo 4,10).
Sobre ela, Agostinho escreveu: “Se não houvesse, em toda esta carta e em todas as páginas da Escritura, nenhum elogio do amor além desta única palavra, que Deus é amor, não precisaríamos de nada mais” [2]. Toda a bíblia não faz senão “narrar o amor de Deus” [3]. Esta é a notícia que sustenta e explica todas as outras. Discute-se, sem fim, e não só de hoje, se existe Deus. Mas eu acho que o mais importante não é saber se Deus existe, mas se Ele é amor. Se, por hipótese [4], Ele existisse mas não fosse amor, teríamos mais a temer do que a nos alegrar com a sua existência, como ocorria nos primeiros povos e civilizações. A fé cristã nos assegura justo isso: Deus existe e é amor!
O ponto de partida da nossa viagem é a Trindade. Por que os cristãos crêem na Trindade? A resposta é: porque crêem que Deus é amor. Onde Deus é concebido como Lei suprema ou Poder supremo, não é preciso, evidentemente, uma pluralidade de pessoas, e, portanto, não se entende a Trindade. O direito e o poder podem ser exercidos por uma só pessoa. O amor não.
Não há amor sem que seja de algo ou de alguém, como, segundo o filósofo Husserl, não há conhecimento que não seja de algo. Quem é que Deus ama, para ser definido amor? A humanidade? Mas os homens só existem há poucos milhões de anos! Antes, a quem Deus amava, para ser definido amor? Ele não pode ter começado a ser amor a um certo ponto do tempo, porque Deus não pode mudar a sua essência. O cosmo? Mas o universo existe faz poucos bilhões de anos. Antes, o que Deus amava para poder-se definir amor? Não podemos dizer: amava a si mesmo, porque amar a si próprio não é amor, mas egoísmo, ou, como dizem os psicólogos, narcisismo.
E eis a resposta da revelação cristã que a Igreja recolheu de Cristo e explicitou no seu credo: Deus é amor em si mesmo, antes do tempo, porque desde sempre Ele tem em si um Filho, o Verbo, a quem ama com amor infinito, que é o Espírito Santo. Em todo amor há sempre três realidades ou sujeitos: um que ama, um que é amado e o amor que os une.
2. O amor de Deus na criação
Quando este amor-fonte se derrama no tempo, temos a história da salvação. A primeira etapa é a criação. O amor é, por natureza, “diffusivum sui”, tende a comunicar-se. Como “o agir segue o ser”, Deus, sendo amor, cria por amor. “Por que Deus nos criou?”: esta era a segunda pergunta do catecismo de antigamente, e a resposta era: “Para conhecê-lo, amá-lo e servi-lo nesta vida e desfrutá-lo na outra, no paraíso”. Resposta parcial. Ela responde à pergunta sobre a causa final: “para quê, com que finalidade fomos criados por Deus”; não à pergunta sobre a causa causante: “por quê, por qual motivação, fomos criados por Deus”. Esta pergunta não tem como resposta “para o amarmos”, mas sim “porque Ele nos ama”.
Segundo a teologia rabínica, citada pelo Santo Padre no seu último livro sobre Jesus, “o cosmo é criado não para existirem múltiplos astros e tantas outras coisas, e sim para haver um espaço para a aliança, o sim do amor entre Deus e o homem que lhe responde” [5]. A criação existe para o diálogo de amor de Deus com as suas criaturas.
Como é distante, neste ponto, a visão cristã da origem do universo da visão do cientificismo ateu recordado no Advento! Um dos sofrimentos mais profundos para um jovem é descobrir, um dia, que ele está no mundo por acaso, não querido, não esperado, talvez por uma falha dos pais. Um certo cientificismo ateu parece empenhado em infligir esse tipo de sofrimento à humanidade inteira. Ninguém saberia nos convencer melhor que Santa Catarina de Sena de termos sido criados por amor, numa sua fervente prece à Trindade:
“Como criaste, então, ó Pai eterno, esta tua criatura? [...] O fogo te obrigou. Ó amor inefável! Embora em tua luz previsses toda as iniquidades que a tua criatura cometeria contra a tua bondade infinita, agiste como se não visses, e pousaste a vista na beleza da tua criatura, da qual, como louco e ébrio de amor, te enamoraste e, por amor, a extraíste de ti, dando-lhe o ser à tua imagem e semelhança! Tu, verdade eterna, declaraste a mim a tua verdade: que o amor te obrigou a criá-la”.
Isto não é só ágape, amor de misericórdia, de doação e de descida; é também eros em estado puro; é atração pelo objeto do próprio amor, estima e fascínio pela sua beleza.
3. O amor de Deus na revelação
A segunda etapa do amor de Deus é a revelação, a Escritura. Deus nos fala do seu amor sobretudo nos profetas. Diz em Oseias: “Quando Israel era um menino, eu o amei [...]. Eu ensinei Efraim a caminhar, conduzindo-o pelos braços [...]. Eu o atraía com laços humanos, com vínculos de amor; era, para eles, como quem retira o jugo e lhes dava docemente de comer [...]. Como poderia abandonar-te, Efraim? [...] O meu coração se comove inteiro dentro de mim, todas as minhas compaixões se acendem” (Os 11, 1-4).
Achamos esta mesma linguagem em Isaías: “Acaso uma mulher esquece o filho e não se comove pelo fruto do seu ventre?” (Is 49,15). E em Jeremias: “Efraim é o filho que amo, meu pequeno, meu encanto! Toda vez que o repreendo recordo-me disso, comove-se o meu âmago e cedo à compaixão” (Jer 31,20).
Nestes oráculos, o amor de Deus se expressa ao mesmo tempo como amor paterno e materno. O amor paterno é feito de estímulo e solicitude; o pai quer o filho crescido e levado à plena maturidade. Por isso o corrige e dificilmente o louva em sua presença, por medo que se ache pronto e não progrida mais. Já o amor materno é feito de acolhida e de ternura; é um amor visceral; parte das profundas fibras do ser da mãe, onde a criatura se formou, e ali enraíza toda a sua pessoa, fazendo-a “estremecer de compaixão”.
No âmbito humano, esse dois tipos de amor –viril e materno– são sempre, mais ou menos claramente, repartidos. O filósofo Sêneca dizia: “Não vês como é diferente a maneira de amar do pai e da mãe? Os pais acordam cedo os filhos para estudarem, não os deixam ociosos e os fazem derramar suor e às vezes lágrimas. As mães os embalam no colo, querem mantê-los por perto e evitam contrariá-los, fazê-los chorar e fazê-los cansar-se” [6]. Mas enquanto o Deus do filósofo pagão só tem pelos homens “o ânimo de um pai que ama sem fraqueza” (são palavras dele), o Deus bíblico tem também o ânimo da mãe que ama “com fraqueza”.
O homem conhece por experiência outro tipo de amor, do qual se diz que é “forte como a morte e suas centelhas são centelhas de fogo” (cf. Ct 8,6), e também a esse tipo de amor Deus recorreu, na bíblia, para nos dar uma ideia do seu amor apaixonado por nós. Todas as fases e vicissitudes do amor esponsal são evocadas e usadas para esse fim: o encanto do amor no estado nascente do namoro (cf. Jer 2,2); a plenitude da alegria do dia do casamento (cf. Is 62,5); o drama do rompimento (cf. Os 2,4) e, por fim, o renascer, cheio de esperança, do vínculo antigo (cf. Os 2,16; Is 54,8).
O amor esponsal é, fundamentalmente, um amor de desejo e de escolha. Se é verdade, então, que o homem deseja Deus, é verdade, misteriosamente, também o contrário: que Deus deseja o homem, quer e aprecia o seu amor, se alegra com ele “como o esposo se alegra com a esposa” (Is 62,5)!
Como o Santo Padre realça na Deus caritas est, a metáfora nupcial que atravessa quase toda a bíblia e inspira a linguagem da “aliança” é a melhor prova de que o amor de Deus por nós também é eros e ágape, é dar e buscar juntos. Não pode ser reduzido a pura misericórdia, a um “fazer caridade” ao homem, no sentido mais diminuído da expressão.

4. O amor de Deus na encarnação
Chegamos assim à etapa culminante do amor de Deus, a encarnação: “Deus tanto amou o mundo que lhe deu seu unigênito” (Jo 3,16). Diante da encarnação, perguntamos o mesmo que nos perguntamos na criação: por que Deus se fez homem? Cur Deus homo? Por muito tempo, a resposta foi: para nos redimir do pecado. Duns Scoto aprofundou esta resposta, fazendo do amor o motivo fundamental da encarnação, como de todas as outras obras ad extra da Trindade.
Deus, conforme Scoto, ama primeiramente a si mesmo; segundo, quer outros seres que o amem (“secundo vult alios habere condiligentes”). Se Ele decide a encarnação, é para que exista outro ser que o ame com o máximo amor possível fora dele mesmo [7]. A encarnação, portanto, teria ocorrido ainda que Adão não tivesse pecado. Cristo é o primeiro pensado e o primeiro querido, o “primogênito da criação” (Col 1,15), não a solução para um problema levantado a seguir com o pecado de Adão.
Mas a resposta de Scoto também é parcial e precisa do complemento da Escritura quanto ao amor de Deus. Deus quis a encarnação do Filho não só para ter alguém fora de si mesmo que o amasse de maneira digna de si, mas também e principalmente para ter fora de si mesmo alguém a quem amar de maneira digna de si! E este é o Filho feito homem, em quem o Pai “encontra toda a sua complacência” e com quem fomos todos feitos “filhos no Filho”.
Cristo é a prova suprema do amor de Deus pelo homem, não só em sentido objetivo, como penhor inanimado do próprio amor dado a outro, mas em sentido também subjetivo. Em outras palavras, não é só a prova do amor de Deus, mas é o próprio amor de Deus que tomou forma humana para pode amar e ser amado a partir de dentro da nossa situação. No princípio era o amor e “o amor se fez carne”: assim parafraseia um antiquíssimo escrito cristão as palavras do prólogo de João [8].
São Paulo cunha uma expressão sob medida para esta nova modalidade do amor de Deus: “o amor de Deus que é em Cristo Jesus” (Rm 8,39). Se, como dizia da vez passada, todo o nosso amor por Deus deve expressar-se concretamente em amor por Cristo, é porque todo amor de Deus por nós foi antes expresso e recolhido em Cristo.
5. O amor de Deus infundido nos corações
A história do amor de Deus não acaba na Páscoa de Cristo, mas se prolonga no Pentecostes que atualiza e mantém operante “o amor de Deus em Cristo Jesus” até o fim do mundo. Não somos obrigados, portanto, a viver só da lembrança do amor de Deus, como de coisa passada. “O amor de Deus foi infundido nos nossos corações mediante o Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5). 
Mas o que é esse amor, que foi derramado em nosso coração no batismo? É um sentimento de Deus por nós? Uma benévola disposição de Deus a nosso respeito? Uma inclinação? Algo, enfim, de intencional? É muito mais; é algo real. É, ao pé da letra, o amor de Deus, o amor que circula na Trindade entre Pai e Filho e que, na encarnação, assumiu uma forma humana e agora nos é participado sob a forma de “inabitação”. “O meu Pai o amará e a ele nós viremos e nele faremos morada” (Jo 14,23).
Tornamo-nos “partícipes da natureza divina” (2 Pd 1,4), ou partícipes do amor divino. Encontramo-nos por graça, explica São João da Cruz, dentro do vórtice de amor que flui desde sempre na Trindade entre o Pai e o Filho [9]. Melhor ainda: entre o vórtice de amor que agora flui, no céu, entre o Pai e o seu Filho Jesus Cristo, ressuscitado da morte, de quem nós somos os membros.
6. Nós acreditamos no amor de Deus!
Veneráveis padres, irmãos e irmãs, esta que tracei pobremente é a revelação objetiva do amor de Deus na história. Agora olhemos para nós: o que faremos, o que diremos depois de ter escutado o quanto Deus nos ama? Uma primeira resposta é: reamar a Deus! Não é, este, o primeiro e o maior dos mandamentos da lei? Sim, mas isto vem depois. Outra resposta possível: amar-nos como Deus nos amou! Não diz o evangelista João que, se Deus nos amou, “também nós devemos amar uns aos outros” (1 Jo 4,11)? Isso também vem depois. Primeiro temos outra coisa a fazer. Crer no amor de Deus! Depois de dizer que “Deus é amor”, o evangelista João exclama: “Nós acreditamos no amor que Deus tem por nós!” (1 Jo 4,16).
É a fé. Mas aqui se trata de uma fé especial: a fé-estupor, a fé incrédula (um paradoxo, eu sei, mas verdadeiro!), a fé que não sabe entender daquilo em que crê, mesmo crendo. Como é possível que Deus, sumamente feliz na sua quieta eternidade, tenha tido o desejo não só de nos criar, mas até de vir em pessoa sofrer em meio a nós? Como é que isto é possível? Pronto: esta é a fé-estupor, a fé que nos faz felizes.
O grande converso e apologeta da fé Clive Staples Lewis (autor do ciclo narrativo de Nárnia, recentemente levado ao cinema) escreveu uma obra singular intitulada “As Cartas do Coisa-Ruim”. São cartas que um diabo velho escreve a um diabinho jovem e inexperiente, que tem a missão na terra de desencaminhar um jovem londrino recém-retornado à prática cristã. A meta é instruir o diabinho quanto às estratégias para atingir o objetivo. Trata-se de um moderno, finíssimo tratado de moral e ascética, a ser lido pelo contrário, fazendo exatamente o oposto do que é aconselhado.
A um certo ponto, o autor nos faz assistir a uma espécie de discussão entre os demônios. Eles não conseguem entender que o Inimigo (é assim que eles se referem a Deus) ame de verdade “os vermes humanos e deseje a liberdade deles”. Eles têm certeza de que isso não pode ser. Deve haver, necessariamente, uma farsa, um truque. Estamos nos perguntando isso, dizem eles, desde o dia em que o Nosso Pai (é assim que eles chamam Lúcifer), justo por este motivo, se afastou dele; ainda não descobrimos, mas um dia descobriremos [10]. O amor de Deus pelas suas criaturas é, para eles, o mistério dos mistérios. E eu acredito que, pelo menos nisso, os demônios têm razão.
Pareceria uma fé fácil e agradável; mas é, talvez, a coisa mais difícil que exista, até para nós, criaturas humanas. Acreditamos, nós, de verdade mesmo, que Deus nos ama? Não é que não creiamos de verdade, mas pelo menos não cremos o suficiente. Se acreditássemos, a vida, nós mesmos, as coisas, os fatos, a própria dor, tudo se transfiguraria rapidamente diante dos nossos olhos! Hoje mesmo estaríamos com ele no paraíso, porque o paraíso é isso: gozar da plenitude do amor de Deus.
O mundo sempre foi dificultando mais acreditar no amor. Quem foi traído ou ferido uma vez, tem medo de amar e ser amado, porque sabe o quanto dói ver-se enganado. Por isso vai sempre crescendo a fila dos que não conseguem acreditar no amor de Deus; ou pior: em amor nenhum. O desencanto e o cinismo são a moldura da nossa cultura secularizada. No pessoal, temos ainda a experiência da nossa pobreza e miséria, que nos faz dizer: “Sim, o amor de Deus é bonito, mas não é pra mim! Eu não sou digno...”.
Os homens precisam saber que Deus os ama e ninguém melhor que os discípulos de Cristo para lhes dar essa boa notícia. Outros, no mundo, compartilham com os cristãos o temor de Deus, a preocupação com a justiça social e o respeito do homem, com a paz e a tolerância; mas ninguém –ninguém!– entre os filósofos, nem entre as religiões, diz ao homem que Deus o ama, o ama primeiro, e o ama com amor de misericórdia e de desejo: com eros e com ágape.
São Paulo nos sugere um método para aplicar à nossa existência concreta a luz do amor de Deus. Escreve: “Quem nos separará do amor de Cristo? Será a tribulação, a angústia, a perseguição, a fome, a nudez, o perigo, a espada? Mas em todas essas coisas nós somos mais que vencedores, em virtude daquele que nos amou” (Rm 8, 35-37). Os perigos e os inimigos do amor de Deus que ele enumera são aqueles que, de fato, ele experimentou na vida: angústia, perseguição, espada... (cf. 2 Cor 11,23). Ele os repassa na mente e constata que nenhum deles é forte o bastante para triunfar quando se pensa no amor de Deus.
Nós estamos convidados a fazer como Ele: olhar para a nossa vida, do jeito que ela se apresenta, e trazer à tona os medos que se aninham nela, as tristezas, ameaças, complexos, aquele defeito físico ou moral, aquela lembrança doída que nos humilha, e escancarar tudo à luz do pensamento de que Deus me ama.
Da sua vida pessoal, o Apóstolo estende o olhar para o mundo que o circunda. “Eu estou certo de que nem a morte, nem a vida; nem anjos nem principados; nem presente nem futuro; nem potestades, nem altura, nem profundidade, nem nenhuma outra criatura poderá jamais nos separar do amor de Deus, em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Rm 8, 37-39). Ele observa o seu mundo, com as potências que o tornavam ainda mais ameaçador: a morte com o seu mistério, a vida presente com as suas lisonjas, as potências astrais ou infernais que incutiam tanto terror no homem de antigamente.
Nós podemos fazer igual: olhar para o mundo que nos circunda e que nos dá medo. A altura e a profundidade são hoje, para nós, o infinitamente grande e o infinitamente pequeno, o universo e o átomo. Tudo está pronto para nos esmagar; o homem é frágil e só, num universo tantas e tantas vezes maior do que ele, e que se tornou, além disso, ainda mais ameaçador depois das descobertas científicas que o homem fez e não consegue dominar, como a crise dos reatores nucleares de Fukushima está dramaticamente nos demonstrando.
Tudo pode ser questionado, todas as certezas podem nos faltar, mas nunca esta: Deus nos ama e é mais forte do que tudo. “O nosso auxílio está no nome do Senhor que fez o céu e a terra”.
Notas:
1. Aristóteles, Metafísica, XII, 7, 1072b.
2. S. Agostinho, Tratados sobre a primeira carta de João, 7, 4.
3. S. Agostinho, De catechizandis rudibus, I, 8, 4: PL 40, 319.
4. Cf. S. Kierkegaard, Discursos edificantes..., 3: O Evangelho dos sofrimentos, IV.
5. Bento XVI, Jesus de Nazaré, II Parte, Livraria Editora Vaticana, 2011, p. 93.
6. Sêneca, De Providentia, 2, 5 s.
7. Duns Scoto, Opus Oxoniense, I,d.17, q.3, n.31; Rep., II, d.27, q. un., n.3
8. Evangelium veritatis (dos Códigos de Nag-Hammadi).
9. Cf. S. João da Cruz, Cântico espiritual, A, estrofe 38.
10. C.S. Lewis, The Screwtape Letters, 1942, cap. XIX.
[Traduzido do original italiano por ZENIT]

sábado, 2 de abril de 2011

Na tua luz...



No centro deste IV Domingo da Quaresma está o tema da Luz, da passagem das trevas à luz expresso no evangelho com o episódio da cura do cego de nascença que tem implícita uma pedagogia de fé Cristológica. Na segunda leitura o tema tem uma valência baptismal e comporta implicações éticas: a luz baptismal induz a uma vida de conversão. (“É que outrora éreis trevas, mas agora sois Luz no Senhor. Procedei como filhos da luz..." Ef 5,8). Em paralelo com este anúncio a primeira leitura apresenta a unção real de David por parte de Samuel: o gesto e as palavras do profeta que consagram o Messias remetem para as palavras e para os gestos de Jesús "luz do mundo" (Jo 9,5), que dá a luz a quem está nas trevas, com gestos e palavras que invocam a dinâmica sacramental.
As três leituras levantam o problema do discernimento. Primeiro, o difícil discernimento de Samuel para escolher aquele que Deus elegeu entre os filhos de Jesse. Para discernir é preciso ver como Deus vê, consciente que "...o homem vê as aparências, mas o Senhor olha o coração." (1Sam 16,7), ou, como diz a antiga versão siríaca: “o homem vê com os olhos, o Senhor vê com o coração”. Na segunda leitura é pedido ao baptizado que sendo "luz no Senhor" seja capaz de discernir o que agrada a Deus (cf. Ef 5,10-11). O texto evangélico abre-se com o olhar de Jesús e dos discípulos sobre um cego e prossegue com o percurso que leva o cego curado a discernir a verdadeira qualidade de Jesús e a confessar a sua fé n'Ele, enquanto outros se fecham a tal discernimento e permanecem na cegueira espiritual (cf. Jo 9,39-41).
No evangelho Jesús e os discípulos encontram um homem cego, mas olham-no diversamente. Cegos por um axioma teológico que liga de forma automática a doença ao pecado, os discípulos vêm nele um pecador enquanto Jesús vê na doença daquele homem ocasião para se menifestar a acção de Deus. A mesma pessoa e um olhar diametralmente oposto. Quem vemos quando nos deparamos com um doente? O que vemos no sofrimento do outro? O olhar culpabilizante dos discípulos opõe-se ao olhar solidário de Jesús. O texto apresenta-se como uma iniciação em que o homem que era cego recupera a vista e alcança a identidade de Jesús - um reconhecimento que é também um co-nascimento, um renascimento, o nascimento de uma vida completamente renovada pelo encontro com Jesús e expresssa de forma lapidária na confissão "Eu creio Senhor" (Jo 9,38).
O gesto terapêutico de Jesús sobre o cego, quando "...fez lama com a saliva..." (cf. Jo 9,7), recorda o gesto com que Deus criou Adão (cf. Gen 2,7). A re-criação não tem nada de mágico ou espiritualístico, mas tem uma valência humana e conduz aquele que era apenas objecto de palavras e de juízos dos outros a ser sujeito, a assumir a vida, a tomar a palavra e a reivindicar uma identidade: "Sou eu" (Jo 9,9). aquele "Sou eu" é essencial para poder dizer e proclamar com liberdade e convicção "Eu creio!". Tornar-se crente não exime de tornar-se homem. Antes, exige-o.
Diante do cego curado a primeira reacção é a dos conhecidos que fazem perguntas, interrogam mas não se interrogam, não se pôem a si próprios em questão e assim permanecem à superfície (vv. 8-12). O comportamento dos pais que, por medo, não vão além de uma banal constatação do facto (vv. 18-23). O saber teológico dos fariseus, um saber autosuficiente e impermeável, obtuso, que os leva a acusar Jesús (vv. 13-17) e o cego de serem pecadores (vv. 24-34) não se deixando interpelar pelo extraordinário evento. Quem é o cego e quem vê? Esta é a pergunta que o texto suscita. E esta a resposta: vê quem sabe ver a cegueira e abrir-se a acção de cura e de luz que Cristo oferece. “se fôsseis cegos, não estaríeis em pecado; mas, como dizeis que vedes, o vosso pecado permanece." (v. 41).

(texto de LUCIANO MANICARDI, Comunidade de Bose: www.monasterodibose.it)

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